Da vinha ao copo. A alquimia de criar com cada detalhe.

Da vinha ao copo. A alquimia de criar com cada detalhe.

“Um enólogo faz o vinho”. É assim que João Ramos define, de forma resumida, o seu trabalho. Mas é mais do que isso — acompanha-o, desde o momento em que as uvas ainda não são uvas, até quando, finalmente, são vinho engarrafado. É ele que decide cada passo.
João Ramos nasceu em Setúbal, mas as suas raízes dão-lhe memórias de uma vida que não encontrava na cidade, de um Alentejo, dos dias que passava com os seus avós e irmão em Sabugueiro, uma aldeia perto de Arraiolos. Tem a agricultura como imagem presente nas mãos que cavavam a terra com o avô, mas também de ser um explorador, de brincar na areia, andar a correr, da paz e tranquilidade que o campo, e aquela aldeia em particular, lhe traziam.

Tendo sempre o seu irmão mais velho como exemplo e companheiro de brincadeiras, quis desde cedo seguir-lhe as pisadas tendo decidido estudar Ciências e, mais tarde, Agronomia, no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. De essa época lembra todas as pessoas com quem se cruzou, mas também da admiração que não parou de crescer pelo irmão que trabalhava no mundo dos vinhos e lhe passara esse ‘bichinho”. Afunilou os estudos para Viticultura e Enologia, fez as primeiras vindimas em Portugal, voando até França, Alemanha e Itália, onde viveu cada colheita, aprendendo as diferentes formas e tradições de fazer vinho. Sete anos passados foi tempo de regressar para continuar a prolongar as suas raízes no Alentejo, agora como enólogo, responsável pelos vinhos tintos da Herdade do Esporão.

Encontrar um projeto que respeitasse a natureza e o lugar de onde vem era o objetivo do jovem enólogo. Encontrou-o no Esporão e foi “amor à primeira vista”. O que João não sonhava, é que a sua entrada permitir-lhe-ia trabalhar um dos vinhos dos quais guardava memórias: aquele que havia estudado ainda na universidade, aquele que, numa prova de vinhos até cinco euros, dividida com amigos, se destacou pela sua frescura, simplicidade e final suave. Curiosamente também um dos primeiros vinhos que o seu irmão lhe deu a provar, Monte Velho.

Ser enólogo: “o melhor trabalho do mundo” é uma busca sem fim.

“Ouço imensas vezes que ser enólogo é o melhor trabalho do mundo”, conta João Ramos, soltando uma gargalhada enquanto explica o seu trabalho: um enólogo vai regularmente à vinha, prova as uvas, decide o momento ideal em que quer vindimar e receber as uvas na adega, segue a fermentação, define operações, prova vezes sem fim e, no final, faz os lotes. É uma espécie de alquimista que tenta perceber o que existe na vinha e o que a natureza proporciona, mas agarrando nas castas, clima, solo e todos os fatores inerentes à formação de um bago de uva, para criar um lote que mostre a identidade do vinho.

Ainda que produzir vinho seja um ritual milenar, não há duas vindimas iguais. Há uma dança constante com a natureza, com cada lugar, com as adversidades e virtudes de cada pedaço de terra. É isso que faz desta uma profissão apaixonante — “Pelas diferentes origens, ou seja, posso provar uma uva em Itália e provar a mesma casta aqui e são completamente diferentes. É giro ver que o que se faz num sítio não é necessariamente igual e pode não ser bem-sucedido noutro. É uma busca sem fim, em que existe tanta coisa para ver e surpreender, num desafio permanente. É a busca de conhecimento que nunca acaba. Outra coisa é a dimensão e gestão. Gerir pessoas, influenciar e tocar essas pessoas, puxá-las para a prova dos vinhos, mostrar o que viste na vinha e agora vês nos vinhos”.

Um bom vinho é fruto da experiência e da bondade da natureza. Daquela que João traz consigo, mas também daquela com quem aprende desde que, em 2019, viu na imensidão das vinhas da Herdade do Esporão, e na relação com outros produtores, uma casa.

Um dia nunca é igual ao outro, mas em todos tem de haver confiança.

A criação de um vinho acontece durante o ano inteiro, “um dia nunca é igual ao outro, às vezes são planeados passos que não acontecem”, explica João. É comum encontrá-lo nas vinhas, avaliando o estado de cada videira, dialogando com o departamento agrícola para entender o que acontece em cada talhão, e nas vinhas dos fornecedores, e como anda a natureza a ditar o seu trabalho. Conhecer as vinhas é o primeiro passo, antes de chegar à adega. Segundo João, “há uma avaliação visual que comprova o que vemos na vinha ao longo do ano”, e o trabalho de confiança com o departamento agrícola é a base para a enologia conseguir fazer a sua parte.

Na adega, acontecem as fermentações em cubas de pequeno volume, e é aí que existe uma definição do perfil do vinho — “Fazemos fermentações em cubas pequenas, há muita seleção. Tratamos estes pequenos volumes com a calma que transparece depois no seu perfil.” Por norma, quando não estão em fase de vindima, o seu dia começa por provar os vinhos que estão a ser engarrafados. Há dias em que são necessários fazer pequenos ajustes, chegando a provar 30 vinhos. Noutros dias, confessa, chega mesmo a levar vinho para casa, não descansando enquanto não estiver em sintonia com aquilo que sabe que tem de ser o perfil Monte Velho.

É na euforia e azáfama de ver o resultado de meses de espera que João vê o maior desafio. A vindima é o momento em que o enólogo começa a ver as uvas a chegar – “Quando as diferentes uvas começam a chegar, inicia-se o processo de meter a mão na massa, de perceber o que vou fermentar, de perceber onde vou encontrar o equilíbrio (…)”. Toda a Adega Monte Velho – onde são fermentados os vinhos – tem em mãos lotes de cerca de 3 milhões e meio de litros, por isso a prova repete-se durante vários dias. Depois de 60 a 70 vinhos testados, é possível chegar ao lote final. Apesar de todo o departamento de enologia ajudar na decisão do resultado de todo um ano, é o João que apresenta as propostas. Tem de existir consistência com o perfil histórico do Monte Velho, um perfil já longo, de mais de 30 anos.

Mas são esses desafios que para João fazem este trabalho valer a pena. Se há vindimas em que pensa que não vai conseguir, e “quase não dorme” a pensar nisso, o sentimento de “consegui” que encontra quando vê a sua garrafa nas prateleiras do supermercado, nos restaurantes, e entre amigos, faz valer tudo. Vindima a vindima, mantém a certeza de que: “é fundamental que a vindima dê prazer, se não nada corre bem. Às vezes temos de deixar as coisas em stand by e voltar no dia seguinte. Quando chegas parece que tudo faz sentido. A experiência traz aprendizagem, não só para puxar a nossa parte criativa, mas também para saber desligar”.

Nem só de rituais é feito um vinho, mas de conexões.

Monte Velho traz a consistência no seu ADN. É um vinho que expressa a região, a relação com os parceiros, a sabedoria que cada um acrescenta a cada fase. João traz e adiciona a simplicidade. Procura vinhos frutados, ligeiros, com um balanço entre o volume e o final de boca. Para si, Monte Velho é um vinho para todas as ocasiões, mas também para todas as gerações, e por isso tenta que as suas escolhas o reflitam.

Tal como vemos um jogador, seja de andebol, futebol, ou outro desporto qualquer, a fazer o sinal religioso da cruz antes de entrar em campo, João tem o seu ritual na altura das vindimas, a sua superstição que acredita ser quase como um ingrediente secreto. Uma boa noite de sono. Assim consegue assegurar a calma e a criatividade.

“Feito devagar no Alentejo”, é o modo de vida que João aprendeu nos tempos em que ainda começava a descobrir o mundo. Quis uma dose de destino e outra de ambição, que a aplicasse naquilo que veio a ser a sua paixão e profissão, e o faz continuar a descobrir o universo do vinho. Questionado sobre com quem brindaria com Monte Velho, a resposta não podia ser mais feliz, íntima e óbvia: o seu irmão.