Mais abaixo, junto às linhas de água que vão ter ao meandro do Douro que marca o limite sul de Murças, escutam-se apitos roucos vindos dos canaviais: são os galeirões comuns que emitem curtos chamamentos. Mas a surpresa está na vertente norte do monte, que se ergue a maior altitude nas imediações da quinta. Uma considerável mancha florestal, com bosquetes de azinho e medronhais salpicados de sobreiros e pinheiros dispersos. O vulto é raramente avistado, mas uma vez assomado fica para sempre na nossa memória. É a maior rapina noturna e uma das mais imponentes aves de Portugal. Pode ter entre meio metro e quase 90 centímetros de tamanho, perto de 2 metros de envergadura de asas, olhos amarelos enormes e dois penachos em forma de orelhas. É verdade. Se tiver sorte, pode uma noite ouvir o seu peculiar “u-hu!” ecoar na noite trasmontana ou até mesmo ver o magnífico bufo-real.
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O Douro de outras eras corre agora lento, menos rico e entre paredões, silenciosamente deslizando as suas memórias submersas nas águas escuras e frias, em direção ao mar a coberto da noite.
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Lá estão eles: mãe e três filhos, já a perder as riscas. Andam à procura de cogumelos, raízes e bolotas para a engorda. O tempo frio já se adivinha pelo círculo de gelo brilhante que rodeia a lua crescente e pela névoa que cobre os montes mais altos das redondezas, horas depois do dealbar. Os javalis, também conhecidos por porcos do mato, fazem parte integrante do ecossistema agro-florestal da Quinta dos Murças, sendo muito importantes na promoção da biodiversidade – ao revolverem as camadas superficiais, arejam o solo e reintegram a matéria orgânica que irá suportar novos ciclos de plantas e animais. No dia seguinte, podemos ver as fossadas e as banheiras formadas na lama onde se espojam para criar barreiras de proteção aos parasitas. Ocasionalmente, são organizadas batidas ou montarias para ajudar a controlar as suas populações, agora que os lobos há muito passaram para o lado das lendas de outras eras. Porém, às vezes também nos deparamos com a infeliz situação de saber que foram capturados e abatidos por caçadores ilegais, que usam armadilhas de cheiro para atrair estes animais.
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À gineta que acabámos de ver a correr em frente aos faróis do carro, podemos juntar raposas, martas, doninhas ou até esquilos, toupeiras e, com muita sorte, gatos-bravos e lobos. Sim, afinal eles ainda andam por aí e estão novamente em fase de crescimento, fruto do enorme investimento feito na sua protecção e conservação e do reforço das populações, pela entrada de efectivos vindos de Espanha. No Inverno é comum observar machos jovens a deambular pelas serranias menos humanizadas à procura de território para conquistar.
Para nós, é agradável poder imaginar um mundo assim: onde pessoas e animais silvestres possam coabitar com maior harmonia e onde o uivo dos lobos ainda se possa voltar a ouvir, remetendo-nos para um imaginário ancestral onde os humanos ainda estavam à procura do seu lugar nesta paisagem fascinante.
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Hoje a casa está em grandes obras de modificação e adaptação às comodidades e necessidades do século XXI, sendo que existe o máximo cuidado e respeito pelos elementos tradicionais da traça, materiais e técnicas de construção em conjugação com tendências modernas de construção sustentável e uma cuidada gestão de resíduos de construção, de materiais, da água e da energia.
A Quinta dos Murças vem do século XVIII, mas foi nos anos 40 do século XX que se deu o grande investimento na reabilitação do património e nas vinhas, tendo sido aqui plantadas as primeiras grandes vinhas ao alto que se tornaram numa característica curiosa da região. E foi o homem que impulsionou esta mudança: Manuel Pinto de Azevedo, que viria, mais tarde, a entrar no imaginário de todos que por aqui passam.
Reza a lenda que o seu carácter era tão forte e ficou tão intimamente ligado à história da quinta que, mesmo após a sua morte, algo seu se manteve por aqui. Talvez um espírito que insiste em zelar pela casa de Murças. Ninguém aqui acredita em fantasmas, claro, mas, se à noite na adega se escutar um som menos natural, se soarem passos ou algo a mexer, logo fica a dúvida: será que é o ‘velho’ que aí anda? Na antiga casa, havia um quarto histórico no qual existia um retrato de Manuel Pinto de Azevedo do qual ninguém tinha nada a temer. Ainda assim, quem lá dormia sentia-se algo intimidado ao contemplar o rosto do antepassado e, se deixasse a imaginação voar, acabava muitas vezes sugestionado: haveria ali algo mais do que um retrato? Muitos preferiram dormir noutros quartos, acompanhados, não porque acreditassem nestas coisas do sobrenatural, mas “assim como assim”, mais valia prevenir.
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Já passa das duas da manhã e o frio que se deveria sentir é disfarçado por algo que torna mais amena a brisa húmida vinda de norte: a satisfação por ficar a conhecer melhor o maravilhoso lado obscuro da Quinta dos Murças.
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